M. Botelho, escultor de túmulos

J. Pinharanda, 2019

Sabemos das alianças tecidas entre a fotografia e a morte. É um dado comum dos relatos antropológicos e das reflexões filosóficas e estéticas em torno da fotografia bem com das relações que a sua prática e consumo estabelecem com certos grupos sociais, certas realidades culturais e históricas.
No seu trabalho, Manuel Botelho nunca forçou essa relação - no sentido de nunca a ter ilustrado - mas também nunca se afastou dela - no sentido de sempre ter trabalhado o tema da morte quando, a partir de 2006, passou a usar a fotografia como meio privilegiado de expressão artística.
Com a mesma aparente sistematicidade com que regista agora estes túmulos, Manuel Botelho registou, nesses seus primeiros trabalhos fotográficos, uma numerosa colecção de armas individuais, usadas pelas duas partes beligerantes nas guerras coloniais portuguesas. Depois, o artista, pegou em armas, vestiu uma farda, rodeou-se de objectos contextualizadores e encenou-se como soldado figurando num vasto conjunto de episódios que podem constituir sucessivas séries desmistificadoras, (auto-)derrisórias, capazes de compor a narrativa fragmentária de um certo bom e valente soldado Chveik. Algumas vezes, nessas séries o seu corpo é o jacente de uma morte sem sepultura, arrefecendo, esquecido no chão como “menino de sua mãe”, mas essa opção da morte em palco é raramente assumida.
E agora, quando essa ligação à morte parece mais óbvia, porque Manuel Botelho regista, de um modo que nos parece sistemático, imagens de túmulos com sua estatuária jacente, é talvez a altura em que, paradoxalmente e de modo mais forte, ele ensaia fugir do círculo em que se tem movido (1).
O registo de que falamos parece-nos sistemático mas devemos antes considerá-lo, como os anteriores, obsessivo. De facto, como Manuel Botelho não testemunha aqui, nenhuma preocupação de levantamento, de classificação, de esclarecimento iconográfico, nenhuma clareza no registo e transmissão das formas, dos seus pormenores artisticamente significativos, lhe importa (2). A luz e o ponto de vista das imagens são exclusivamente determinados pelo valor que Manuel Botelho pretende dar à cena (podemos assim chamar-lhe, pois é uma encenação, tão cuidada como as que fazia com modelo vivo) e não pela necessidade de esclarecimento de nenhum discurso historiográfico – por isso mesmo, estes trabalhos podem dispensar a erudição de um texto sobre a escultura tumular portuguesa desses séculos.
O projecto desenvolve-se, como os anteriores, num clima de exploração inicial de possibilidades, de intenso trabalho, de ansiedade e interrogação. Interessou-lhe o modo como a arte ultrapassou os horrores da carnagem das batalhas ou da agonia dos corpos doentes, como a própria justificação ideológica e religiosa pode ser deixada de lado face ao poder presencial destas desencarnadas mas encantadas figuras. Manuel Botelho trata da grande morte, não daquela que fixa o corpo a um espasmo final mas daquela que define o lugar-comum que une toda a humanidade: o fim dos tempos, ou seja, da acção. Interessa-lhe, exactamente, o modo como o espasmo de sofrimento e a dor se transmutam num momento de pedra (de pacificação mais do que de paralisia), sem tempo interior, sujeito apenas à acção destrutiva do tempo exterior. É a partir deste conjunto de inquietações que Manuel Botelho deseja encontrar um sentido pessoal, um sentido antropológico e um sentido trans-histórico.
Neste trabalho, Botelho explora as possibilidades, na forma tentada, de não morrer. Observa e regista vários métodos que, fixando os corpos de alta estirpe social de uma sociedade ocidental católica de Antigo Regime numa posição protocolar de repouso eterno, os libertam, tanto da efemeridade do contexto social e histórico, como da lei da morte; que lhes prolongam a morte e, assim, lhes prolongam a vida e os transformam no rosto e no corpo de cada um de nós (3) – morrer é viver, pois e para sempre, na pedra. Agora, a fotografia acrescenta uma camada, lança um manto diáfano sobre cada um desses corpos, replica-os. Como se a fotografia deixasse de ser um comum testemunho de morte ou de roubo do sopro vital da alma do retratado ou, numa versão desmitificada e não-mágica, uma simples possibilidade de registo da morte; e pudesse considerar-se a própria morte como fotografia revelada.
Manuel Botelho afeiçoou-se aos corpos jacentes, às arcas maciças, às tampas amovíveis, à figuração decorativa acessória e simbólica, às arquitecturas que tudo enquadram; afeiçoou-se às sombras, ao pó, às manchas de humidade, ao rendilhado da pedra, às texturas e cores; afeiçoou-se ao tempo; afeiçoou-se, não ao tempo que viu passar (porque ele é de uma desesperante lentidão e imperceptível à escala individual) mas ao tempo que viu ter passado sobre as pedras esculpidas. As suas fotografias cumprem, num subjectivo sistema de equivalência das artes, o papel da escultura tumular que registam. Manuel Botelho, escultor de túmulos, eterniza personagens, imagina auto-representações como aquelas de que já se serviu. E, vendo-se morto num tempo passado que nunca poderia ter sido seu vê-se sobrevivo num futuro que é agora (o desta exposição) e num futuro que já não será seu (aquele em que a perenidade da sua obra acompanhará a perenidade destas esculturas (4).

João Pinharanda
Paris, 13 de Novembro de 2019

Notas
Citações retiradas do texto “A (im)permanência do gesto”, conferência de Manuel Botelho proferica pela primeira vez no âmbito do Congresso Internacional Almas de Pedra. Escultura Tumular: da Criação à Musealização (Museu Nacional Arte Antiga, Lisboa, 2017)

(1) “(…) não é morte que sinto mas antes um estranho sentimento de suspensão, a evocação de. Algo que não será a vida…mas que seguramente não é a morte”.

(2) “(…) nenhuma foi realizada cm o intuito de ilustra um qualquer livro cientifico sobre a matéria. Todas elas foram realizadas apenas com a luz natural disponível e em caso algum dei prioridade clarificação pedagógica das formas e dos elementos iconográficos. (…)”

(3) “Já não são reis que se celebram nesta capela-mor mas sim toda a humanidade”

(4) “(…) ao captar esta imagem passei involuntariamente a ser um dos guardiões da sua preservação” ou “Se a pedra se desfizer, como em muitos casos já está a acontecer (…) talvez apesar de tudo as imagens sobrevivam”