Manuel Botelho: CONFIDENCIAL/DESCLASSIFICADO


João Pinharanda. 2008


CONFIDENCIAL/DESCLASSIFICADO consta de um conjunto articulado de três exposições nas quais Manuel Botelho apresenta trabalhos em suporte fotográfico, um meio de expressão inédito na sua obra plástica.

Prolongando a temática de trabalhos anteriores, das colagens de juventude às pinturas e desenhos do passado recente, o conflito armado surge uma vez mais como pano de fundo.
Ao contrário de muitos dos seus contemporâneos, Botelho não combateu em África; apesar disso (ou talvez por isso!), é daí que parte para falar de questões que ultrapassam esse contexto específico. “Assim, trata-se de registar elementos de uma guerra concreta (a guerra colonial) para falar dessa guerra concreta falando também de todas as outras guerras e ainda da guerra como realidade abstracta; trata-se de representar um papel de soldado-símbolo-de-todos-os-soldados para auto-representar o papel de artista em guerra (crise e abismo) consigo mesmo”(1).

CONFIDENCIAL/DESCLASSIFICADO III: emboscada (Galeria Lisboa 20) será a série que mais directamente se relaciona com trabalhos de Botelho dos últimos anos (Museu Nacional de Arte Antiga, 2000; CAMJAP, Fundação C. Gulbenkian, 2005; Lisboa 20, 2006; etc.). “Ao passar do papel de desenho ou da tela quase branca, onde a pintura era quase desenho, para o papel fotográfico verificamos, primeiro, uma mudança de imagens, motivada pela mudança de media, mas a manutenção dos temas e soluções de composição que cruzavam a memória da pintura religiosa com a tradição da fotografia de reportagem política ou de guerra. Emboscada é uma galeria de imagens que podemos referir ao género da auto-representação já longamente encontrada na obra pictórica e desenhística do autor. No seu passado recente ele recorreu quer à representação pré-moderna nas artes plásticas (clássica e barroca) quer à representação fotográfica como fonte inspiradora de temas, poses, encenações, adereços… Nessas imagens já o encontramos travestido de soldado e de amotinado, personagem sagrada e marginal, já o vimos assumir todos os sexos e idades, contracenar com outro e consigo mesmo. Esta etapa do seu trabalho fotográfico surge como evolução natural dessa tradição pessoal”(2).

CONFIDENCIAL/DESCLASSIFICADO II: ração de combate (Fundação EDP, Museu da Electricidade, Lisboa) pode de modo muito genérico relacionar-se com a tradicional natureza-morta. Inspiradas nas desventuras da tropa das unidades de quadrícula, estas imagens falam de uma guerra de pé descalço, jogos de cartas, álcool, sexo, morte… “desenvolvendo um paroxismo emotivo e histriónico mas sendo conduzidos a uma bidimensionalidade que quase os abstractiza”(3) . “A auto-representação humana surge nelas intensamente; mas, pelo seu carácter fragmentar, só pode ser entendida como mais um elemento compositivo da própria “Natureza-Morta”, radicalizando apenas o estatuto de inquietação que historicamente já é atribuído a uma peça de caça ou a um esfolado… Quanto ao mais, a multiplicação dos tabuleiros, dados e cartas de jogar, notas velhas e desagradáveis restos de comida, cinzeiros, beatas e mapas secretos, documentos classificados e objectos militares ou de secretária, assim como o modo agressivo ou inquietante como tudo isto se conjuga, serve o desejado adensar do clima psicológico que associamos à guerra”(4).

Num registo neutro e paradoxalmente ainda mais interventivo, mais violento e denunciador de violência do que as restantes séries”(5), CONFIDENCIAL/DESCLASSIFICADO I: inventário (Museu de Arte Contemporânea de Elvas), na realidade a primeira peça deste puzzle, é quase isso mesmo: um inventário, extenso mas inevitavelmente incompleto, de armas utilizadas ou apreendidas pelas forças armadas portuguesas durante o conflito. “Ao serem apresentadas de modo absolutamente neutro (fotografadas de ambos os lados sobre um fundo negro, e expostas em filas regulares num lugar eminentemente militar, um desafectado paiol), estas imagens reforçam o seu potencial evocativo”(6) . Num painel diverso integrado na exposição, “o autor em auto-representação […] encena uma espécie de tríptico religioso de entronização que acaba por nos conduzir a uma dimensão de ritualização e sacralização do sacrifício da guerra”(7) . A mostra inclui ainda o vídeo “Inventário: mensagens de Natal”(8).


  • Notas:

    1 - João Pinharanda, “Lisboa: o teatro da guerra”, 2008. Não publicado.
    2 - Idem.
    3 - Idem.
    4 - João Pinharanda, “Os relatórios secretos de Manuel Botelho”, catálogo da exposição de Manuel Botelho - CONFIDENCIAL/DESCLASSIFICADO: ração de combate, Fundação EDP, Museu da Electricidade, 2008.
    5 - João Pinharanda, “Lisboa: o teatro da guerra”, 2008. Não publicado.
    6 - João Pinharanda, folha de sala da exposição CONFIDENCIAL/DESCLASSIFICADO I: inventário.
    7 - João Pinharanda, folha de sala da exposição CONFIDENCIAL/DESCLASSIFICADO I: inventário.
    8 - Durante 13 anos Portugal enviou quase todos os seus jovens do sexo masculino para a guerra em Angola, Guiné e Moçambique. Num país calado pela censura, pouco ou nada soubemos do seu destino. As Mensagens de Natal da RTP são um exemplo paradigmático desse silenciamento.