Conta-me como foi...
João Pinharanda. 2011
Podemos evocar dois poemas, de muito diferente origem, tempo e destino público, perante um maço de cartas de amor: os versos melodramáticos da canção ligeira de Tony de Matos e a complexidade analítica do poema de Álvaro de Campos/Fernando Pessoa. Se os evocarmos a pretexto deste trabalho de Manuel Botelho, talvez se esclareça melhor o fundo psicológico e o contexto histórico e social que enquadra os diálogos de Amor que o artista encontrou na Feira da Ladra, comprou, transcreveu, fotografou, fez ler e encenou para um público que, inesperadamente, se descobre capaz de ter escrito ou lido partes dessas longas páginas de “cartas banais”: “Cartas grandes, extensas, iguais/ Ao [seu] grande sofrer” (Tony de Matos).
Álvaro de Campos não procura a justificação cultural ou mesmo mítica das grandes histórias de amor. Sem deixar de ter uma perspectiva intemporal, porque se refere a “Todas as cartas de amor”, inclui-se no mesmo universo (“Também escrevi em meu tempo cartas de amor”), funde todos os casos passados presentes e futuros e desarma sem piedade o sentido de excepcionalidade que o discurso vulgar atribui ao Amor; porque, de facto, afirma ele, “Todas as cartas de amor são/ Ridículas” e “Não seriam cartas de amor se não fossem/ Ridículas”, confirmando que, também as suas cartas de amor, teriam sido ridículas. A consciência do Ridículo parece apenas poder formar-se depois do amor (um amor concreto ou mais ainda a possibilidade mesmo do Amor) ter acabado. De facto, o poeta, lamenta o passado perdido: “Quem me dera no tempo em que escrevia/ Sem dar por isso/ Cartas de amor/ Ridículas”.
Os autores reais das cartas de amor que ouvimos ler na instalação de Manuel Botelho não têm, evidentemente, esta consciência crítica. Podemos descodificar o valor sentimental dessas cartas de amor, que é intenso, mas percebemos a mediania da sua densidade psicológica, valor literário e histórico, fatalmente determinadas pela fragilidade cultural e política de ambos os intervenientes. Ainda assim, malgré eux, são decisivos documentos: na medida em que raras são as cartas escritas no feminino, e mais raro ainda é existir uma carta e a sua resposta.
Os protagonistas escreveram-se, longamente, dois anos intensos de “extensas”, “iguais” e “ridículas” cartas de amor. Por vezes tinham ideia que a linguagem lhes era escassa para exprimir o que sentiam, por vezes desejavam ser menos insistentes, menos repetitivos mas nunca desmontam os frágeis mecanismos do aparato conceptual que determina o seu pensamento.
Assim sendo, o seu tom aproxima-se mais do da cançoneta popular, cronologicamente coincidente com a época histórica para que estas cartas de amor remetem. Passo a passo, embora nunca haja ruptura nem drama, do que nestas cartas se fala é da saudade e da falta, do ciúme e do silêncio, do sonho de um futuro próximo e diverso. O que ouvimos, de ambos os intervenientes, embora as cartas dela sejam, esteriotipadamente, mais carregadas de sentimento e emotividade, são realmente “[...] Pedaços de dor?/ Sentidas de alguém” (Tony de Matos). Cada um dos elementos do casal é um eco dos versos cantados por uma das mais famosas estrelas populares de então: “Nelas jurei/ Com verdade o amor que senti/ Quantas noites em claro passei/ A escrever para ti?/ Cartas banais/ Que eram toda a razão do meu ser [...]”.
É esta dimensão de sinceridade que nos toca ao ouvirmos ler os excertos dessas cartas. É interessante, aliás, que mesmo Álvaro de Campos insista, em certa altura do seu poema, na presença desse sentimento ao afirmar que, “As cartas de amor, se há amor,/ Têm de ser/ Ridículas” e que, “Só as criaturas que nunca escreveram/ Cartas de amor/ É que são/ Ridículas.”
Na instalação apresentada, temos duas cenas que se sucedem no espaço – devemos pensá-las como tempos simultâneos, duas faces de uma mesma moeda. Mas, de facto, entramos pelo fim, na história que temos vindo a desvendar neste texto. Assim, ao longo das paredes da primeira sala, pendurados como os grandes tapetes antigos eram pendurados, vemos uma colecção de panos de tendas de campanha. A história que nos contam não está neles figurada mas nós sabemo-la de cor: é uma história de homens, a história abstracta da guerra e da morte.
Na sala seguinte, um novo dispositivo cénico inventa a possibilidade de uma boca de cena (fechada) feita de cortinados domésticos. Pelo texto cruzado ficamos então a saber tudo: tem o sabor de uma rádio-novela ouvida em longas tardes de costura, pequenos lanches, cumplicidades e adivinhadas tensões femininas.
O texto situa-nos no tempo, no espaço e revela-nos a dimensão dos sentimentos: Portugal e Guiné, Anos de 1960 e Guerra Colonial, Amor e Morte, Ciúme e Esperança, … Tudo em doses pequenas e muito portuguesas, fugindo matreiramente quer à censura oficial quer à censura familiar, numa hoje impensável candura sexual e contenção de linguagem.
Nas paredes de ambos os espaços, temos uma escassa colecção de imagens: que pode fixar e recuperar, como imagem artística, as próprias cartas (que antes de mais são documentos sociológicos) e a imagem kitsch de um postal de namorados.
Podemos certamente seguir o cinismo ou derrisão de Álvaro de Campos quando, depois de aceite a inevitabilidade das cartas de amor e do seu Ridículo, conclui que, afinal, as memórias actuais que tem “Dessas cartas de amor/ É que são/ Ridículas”. Mas não é apenas (ou principalmente) a exposição dessa fragilidade humana que move Manuel Botelho, na sua pesquisa e recriação. Ele é um dos autores que têm, no novo século, de modo profundo e inovador, trabalhado sobre o continente artisticamente quase inexplorado que é a Guerra colonial e a presença portuguesa em África.
Já vimos como estas cartas podem ser retrato ideológico do Portugal de então. Aqui são transformadas em obras de arte, ou seja, colocam-nos numa dimensão de interpretação e metáfora: o que sentimos perante a possibilidade da nossa morte ou da morte do ser que amamos? o que sentimos quando estamos longe do que amamos e de quem amamos? como vivemos tudo isto e como o relacionamos com a pequena vida de todos os dias, as suas pequenas alegrias, tristezas, derrotas, êxitos, espantos? Afinal, se tudo é Ridículo, é também tudo muito Banal. Não há heróis para estas/nestas histórias; e se os houvesse, na dimensão excessiva das suas vidas, não se revelariam, eles também, Ridículos?
João Pinharanda
Lisboa, 10 Maio 2011