A memória projectiva

Sérgio Mah, 2017

Álbum é o mais recente projecto artístico de Manuel Botelho, no qual retoma temas centrais – em torno da memória da guerra colonial – da sua produção artística desde 2008, momento que marca também uma inflexão nos seus meios de expressão, do desenho e da pintura, para o predomínio da fotografia e do vídeo.

Este novo corpo de trabalho tem por base dois álbuns de fotografias de um militar português, (aparentemente) da geração do artista, que foi adquirido na Feira da Ladra, local onde o artista, qual respigador, tem recorrentemente encontrado fotografias, objectos e documentos que depois serão, directa ou indirectamente, usados nas suas obras.

Dos álbuns, Manuel Botelho fotografou uma das capas (a única fotografia impressa da exposição) e digitalizou muitas das fotografias que encontrou no seu interior. Além disso, o trabalho de pós-produção foi contido: redimensionamento e adaptação das imagens ao formato do vídeo e pequenos ajustes do cromatismo, contraste e densidade. Operações mínimas e nenhuma intervenção potencialmente estetizante da imagem. Todo o trabalho de transcrição foi desenvolvido com o objectivo de facilitar a perceptibildade das imagens.

Não sabemos se o que o artista nos mostra respeita a integridade geral dos álbuns. E o que mostram as fotografias? São imagens de um soldado português em várias situações, mas existem também diversas fotografias dos espaços do quartel e de paisagens. Nos álbuns não constava nenhuma informação sobre o soldado, nem sobre as datas destas imagens. Porém, numa das imagens aparece escrito numa parede a data de 1966-1967. Noutra imagem é possível ler Benza no telhado de uma caserna. Não se sabendo nada sobre o individuo é possível deduzir que são imagens de um soldado português realizadas durante a sua comissão de serviço em Angola, nos anos finais da década de 1960.

De forma distinta relativamente a séries fotográficas anteriores, nomeadamente nos vários projectos que integram Confidencial/Desclassificado (como Emboscada, Ração de Combate ou Madrinha de Guerra), nas quais a memória da Guerra Colonial é representada, recreada, através de encenações nas quais Manuel Botelho assume o duplo papel de autor e actor, em Álbum, o artista investiga e projecta a experiência da memória através de uma figura simultaneamente concreta e abstracta, real e imaginária.

A partir da evocação de um passado – individual e colectivo – Manuel Botelho indaga a natureza e experiência das imagens, e explora a porosidade, as diferenças e as intersecções entre realidade e ficção. Esta é uma tendência que tem atravessado a sua produção artística mais recente e que ajuda a compreender a opção pelo uso da fotografia e do vídeo. Contudo, importa assinalar que a sua vocação ficcional é mais evocativa que narrativa. A sugestão sobrepõe-se à descrição. A projecção imaginária dispensa e excede a reconstituição histórica. É uma iconografia onde a apropriação e a invenção se defrontam, até ao ponto em que se fundem, explicitando a sua interdependência.

Entreve-se também nesta incursão pelo passado a intenção do artista em perscrutar os efeitos ambivalentes da memória e arquivação fotográficas: de um lado, percebemos que as imagens fotográficas facultam a documentação de momentos de uma realidade distante no tempo, mas num sentido totalmente diverso, pressente-se a erosão da confiança no poder da representação para corresponder com o mundo real, vemos que as imagens não se limitam a fixar e a recrear o passado, que há uma dimensão ambivalente e dialéctica, ficcional, projectiva e abstractizante que potencialmente desloca a imagem para a fabricação de uma realidade nova e paralela. E por conseguinte, as imagens que Manuel Botelho nos traz do passado parecem destinar-se a uma vocação cada vez mais premente: necessidade de reaprender a olhar para as imagens, a não temer a experiência das conjugações e tensões entre atenção histórica e atenção fenomenológica.

O corpo central desta nova obra consiste em duas projecções de vídeo, onde as imagens se vão sucedendo, como um slide show, intercaladas por planos cinzentos. Num dos vídeos, predomina a visão sobre os espaços e os lugares, territórios e paisagens, presumivelmente em zonas no interior ou no exterior contíguo ao quartel em Benza, onde estava colocado o soldado. O outro vídeo centra-se claramente sobre o soldado. O auto-retrato e a auto-representação sobrepõem-se. O gesto, a pose, a performatividade, revelam que o protagonista tem consciência si. A arte da dissimulação une-se à natureza factícia da fotografia. O gesto e a sua representação equivalem-se, são indissociáveis, são solidárias.

Na selecção o artista suprimiu todas as imagens com outros figurantes ou elementos supérfluos de modo a enfatizar a presença isolada do soldado. O protagonista dá-se a ver, por vezes junto a objectos ou interagindo com alguns animais, cães, um macaco, um jovem leopardo, uma ave, uma cobra. Entretanto, emergem os gestos calculados, a expressividade pensada, e por vezes o ressoar das citações (e.g. cenas que imitam acções de combate ou poses típicas dos cowboys nos antigos westerns norte-americanos). Espontaneidade. Fingimento. Simulação. A expressão facial e corporal varia, segue uma ideia, uma imagem, entre o contido e o risível. O protagonista vai representando os seus papeis, as suas figurações, balizadas entre o eu-eu e o eu-actor. E assim somos conduzidos para a história de um homem só, a viver a sua história, a exercitar a sua imaginação, a recrear o seu imaginário, no seu teatro, no seu teatrinho.

O ambiente é sereno, aborrecido. Nada há de trágico nestas imagens. Uma sensação desconcertante, estranha, quando inevitavelmente confrontamos estas imagens, estas poses, com as imagens e as histórias da guerra que conhecemos.

Por outro lado, importa analisar como estes vídeos propõem um jogo-limite – um jogo com os limites – entre a imagem fixa e a imagem em movimento. São imagens paradas, descontínuas, que são organizadas, montadas, sequenciadas, para integrarem um movimento contínuo. Compõem um híbrido semiótico que complexifica e escrutina o estatuto da fotografia, porque desloca a imagem para dois tempos, ou melhor, para um tempo compósito e paradoxal que sobrepõe fixidez e animação, permitindo explorar as oscilações rítmicas do pensamento, e prefigurar um desafio à experiência da atenção.

Esta combinação entre fragmentação e continuidade, parece destinada a gerar o tempo necessário de imersão e absorção no espectador. Tanto o olhar como o tempo abrem-se e fecham-se, avançam e recuam. Alargam-se na horizontal e prolongam-se na vertical. Esta qualidade ambígua e heurística que estrutura cada um dos vídeos bem como o intervalo físico e psíquico entre as duas projecções, forçam-nos a descobrir a natureza e o propósito do nosso próprio olhar. Face à distância histórica, perante o anonimato do protagonista, teremos a possibilidade de ser o dispositivo que monta e desmonta um qualquer gesto ou acontecimento: poderemos ir ao encontro de hipotéticas sincronias, inventaremos campos e contracampos inexistentes, em suma, tentaremos fabricar um evento – um filme – “parecido com todos os outros”. Mas poderemos também, num sentido contrário, aceitar o desafio de pensar tudo outra vez, sabendo, de antemão, que não vemos somente (nem sobretudo) com os olhos, e que a plena experiência do visível requer a mobilização de um corpo e de uma mente disponíveis para experienciar uma realidade que se pressente mas que não se vê, mas a partir do qual tudo é imaginável. É deste modo, que a fotografia se concretiza como uma arte da memória, mais propriamente da memória involuntária, aquela que abre a possibilidade de viver de novo o passado, experienciá-lo com sentido de descoberta.