Vida Mundial e Auto-Retratos


João Pinharanda, 2004.


Olhemos o trabalho de MANUEL BOTELHO nos anos da década de 80 e 90 do século passado e parecem-nos claros os mecanismos de encadeamento das temáticas desenvolvidas. Dessa época, apresentam-se aqui desenhos e pinturas realizados entre 1984 e 1987, maioritariamente em Londres, mas também entre Lisboa e Londres de 1987 a 1996 e em Lisboa, desde essa data.
A obra de MANUEL BOTELHO é marcada por um enunciado duplo e emparelhado de valores que se definem cedo, que se intersectam permanentemente e estruturam o fluir temático dos trabalhos. Interior e exterior, eros e thanatos, alto e baixo ... apresentam-se, no período considerado, de modo bastante individualizado à interpretação do observador servindo-se de cenas de miséria social e cultural, de guerra de sexos, de separação e abandono.

Veremos, porém, que essa simplicidade é ilusória. E que, actualmente, a situação se tornou ainda mais complexa. De facto, assistimos agora, e falamos do período posterior a 1995-98 apresentado nesta exposição, a uma fusão daqueles elementos estruturais nos novos temas glosados e não a um simples cruzamento ou desenvolvimento paralelo.

Por um lado, o artista assume o lugar das suas personagens ficcionais e tende a tornar indistinta a dimensão privada e pública dos temas tratados. Por outro lado, os elementos em jogo dentro de cada imagem provêm de níveis discursivos cada vez mais diversificados e díspares entre si. As plataformas de onde MANUEL BOTELHO parte são, neste momento, a política caseira e internacional, os dramas da sociedade contemporânea e a depuração da arquitectura modernista, a erudição iconográfica do classicismo e as imagens massificadas pelo jornalismo.

Ligado por via familiar à pintura, à ilustração e à arquitectura (1) e ligado profissionalmente à arquitectura (2) MANUEL BOTELHO sempre privilegiou a criação plástica. E sempre relacionou, de forma estrutural, os temas da sua vida pessoal e os temas da realidade envolvente. Fê-lo por formação familiar juvenil, na oposição à política nacional (Estado Novo, Guerra Colonial) e na precoce atenção à situação internacional (Maio de 68, Guerra do Vietname...); e também por necessidade individual de ligar os acontecimentos da sua vida privada (mortes, separações) ao evoluir temático e até estilístico do seu trabalho plástico (3).

Destas circunstâncias resulta uma pintura rara e mal amada no panorama nacional e mesmo contemporâneo. Subjectiva e empenhada, narrativa e programática, associando de modo intenso o desenho e a cor, os elementos do passado artístico e os da modernidade, a pintura de MANUEL BOTELHO relaciona-se com o vasto programa do expressionismo novecentista. Encontrando, como os movimentos históricos anglo-germânicos (figurativos, narrativos, psicologistas e/ou políticos), raízes no simbolismo e no romantismo, MANUEL BOTELHO absorve valores da Pop raushenberguiana, até se encontrar, nos anos 80, com a situação neo-expressionista do "regresso à pintura" e desencadear depois mecanismos de revisitação do Quattrocento, do maneirismo ou do próprio modernismo.

A sua poética e iconografia mergulham na revelação adolescente das "pinturas negras" de Goya e de todo o Picasso, nas lições históricas recolhidas nos Museus do Prado, de Viena ou de Florença e no poderoso magistério do pintor Sá Nogueira (4). A informação que, através dele, lhe chegou da Pop Art, e dentro da qual realizou as primeiras tentativas artísticas adolescentes (colagens), não entrava em contradição com o seu desejo de pintura e, muito menos, com o desejo de figuração e narração que sempre o dominou.

O que já então o perturbava, e o que o período político desencadeado pelo 25 de Abril acentuou, era a dificuldade em estabelecer uma relação de equilíbrio eficaz entre a necessidade de "figuração de terrores pessoais e o dever político de servir uma causa" (5).

Desfeita, com o fim da utopia revolucionária, a ingenuidade política que sustentava um dos termos dessa contradição, MANUEL BOTELHO manteve o compromisso ético de produzir um testemunho crítico sobre a realidade do mundo exterior. Esta circunstância deixou activo o enunciado referido no início deste texto: a tensão entre objectivo e subjectivo, amor e morte, alta e baixa cultura.

MANUEL BOTELHO encontra desde logo, e através de dois expedientes, uma solução de fusão que impede o esgaçamento de sentidos e confere equilíbrio plástico à sua obra: transmitindo a sua dominante confessional e privada através de uma encenação onde predominam formas e temas da actualidade social e política; sobrecarregando de imagens auto-referenciadas ou mesmo de auto-representação, referências historicistas e psicologistas a sua intenção de intervenção e comentário crítico.

Nos anos de 1980 as duas situações enunciadas alternam, ainda em imagens separadas, na sua obra. Algumas pinturas e desenhos, policromias e monocromias seleccionadas para esta exposição, explicitam, como elementos de uma realidade sociológica e até histórica, os temas comentados. Os protagonistas são personagens-tipo de uma desgraça colectiva, exterior ao artista. Mas, porque tornada paradigmática de uma realidade nacional, a desgraça que ilustram condiciona psicologicamente o artista, torna-se-lhe interior, entranha-se no seu ser justificando o pessimismo que o domina.

O artista vive em Londres a partir de 1983, e Portugal, com 9 anos de democracia, aproxima-se da Europa comunitária. Mas, de modo aparentemente paradoxal, os temas que desenvolve têm ainda a ver com um Portugal rural e salazarista: violento, beato, alcoólico, machista, obsceno. O que vemos nas imagens são castelos de um arruinado heroísmo e habitações degradadas, pontes arcaicas e caminhos difíceis, masturbações, vómitos e bebedeiras, viúvas negras, padres e igrejas soterradas, animais de carga ou humanos como bestas de carga, cenas de caça, trabalho pesado e discussões arguments (023 c, 023 d, 025, 025 a, 026, etc.).

As figuras surgem ou destacam-se como monstros ou espectros de uma massa informe, um novelo de traços sobre traços de grafite ou manchas texturadas e raspadas, de cor ácida ou suja. Humanos e animais, sem contornos nítidos, sem verosimilhança anatómica naturalista, esquematicamente definidos como caricaturas, colocados ou fundidos, de modo aparentemente primário, num espaço cenográfico em desequilíbrio e desabamento, são testemunhos evidentes da tradição histórica expressionista que referimos. Podemos recuar às lições estilísticas do grupo Die Brücke, a que devemos descontar toda a dimensão metafísica, ou às formas e temas politicamente empenhados da Nova Objectividade nos anos 20 do século XX. MANUEL BOTELHO enriquece essa ligação em contacto com a tradição figurativa da pintura inglesa, que conhece directamente nos anos de escolaridade em Londres, e num contexto internacional favorável à pintura figurativa, narrativa e truculenta (6).

A obra de MANUEL BOTELHO constrói-se como pintura narrativa, social, crítica, cujo testemunho realista não assenta na tradição do naturalismo português, prolongado até Malhoa (porque, ao contrário de muita da pintura oitocentista europeia, nada havia nele que pudesse ser aproveitado por uma situação moderna). Mas também se desvia quer da nitidez das formas quer da nitidez da mensagem do neo-realismo nacional nos anos de 1940 e 50. Nessa corrente poderia MANUEL BOTELHO ter encontrado cumplicidades temáticas e mesmo estilísticas nas suas referências a Picasso e Van Gogh ou nas grandes composições alegórico-políticas de fôlego muralista. Mas a mensagem de Manuel Botelho, sendo crítica, é desencantada, e, na forma de expressão encontrada, garante não um vigor expansivo mas destrutivo.

Na história nacional, a relação caracterial deste estilo formal e interpretativo de MANUEL BOTELHO, pode fazer-se, mais directamente, com as experiências pós-germânicas dos anos 30 de Bernardo Marques ou Mário Eloy. MANUEL BOTELHO não recebeu directamente, das ilustrações ou pinturas de ambos, nem os temas (comentários sociais e caricaturas psico-sociológicas) nem as formas (marcadas por um expressionismo à Otto Dix ou à George Grosz). Mas, o estudo da obra de seu avô, Carlos Botelho, como ilustrador e comentador da vida nacional, tanto em exemplos coevos dos de Bernardo e Eloy como mais tardios (7), vieram por certo reforçar a ligação estilística de MANUEL BOTELHO à realidade histórica aqui referida.
Porém, logo nos trabalhos iniciais desta exposição marcam-se também os indícios de uma forte influência contemporânea capaz de se sobrepor a qualquer ideia de simples revisitação historicista.

Progressivamente mais evidente, como presença temática e técnica, compositiva e cromática, é a obra do pintor americano Philip Guston (1913-1980), que nos revela o caminho de actualização dos parâmetros expressionistas empreendido por Manuel Botelho. Revela-nos o modo como essa actualização necessariamente implica toda a história da pintura, de Piero della Francesca às práticas da Escola de Nova Iorque, por exemplo (8). MANUEL BOTELHO absorve, e aprofunda nos anos de 1990 e 2000, o entendimento da própria experiência de Philip Guston a partir de Piero ("A Flagelação" ou "O Baptismo") que interpreta como momentos em que o caos real da imagem é dado sob uma aparência de equilíbrio formal e em que os momentos de verdadeira opacidade e impossibilidade de evidência dos referentes e dos significados da imagem surgem sob uma aparência de clareza de propósitos.

O testemunho de Guston permanece, aprofunda-se e autonomiza-se no transcurso da obra de Botelho: as soluções técnicas iniciais depois abandonadas, marcadas por densidades de matéria e cor e métodos de espalhamento e associação na superfície ou o interesse pela banalidade do quotidiano social e individual, pelos seus objectos, as suas cenas, o interesse pelo comentário desse quotidiano e pela elevação desse comentário do nível factual efémero ao nível paradigmático são alguns dos traços de influência gustoniana. Neste propósito, como tecnicamente, a obra de Baselitz dos anos 60, fragmentando figuras gigantescas em planos rasgados e desencontradamente sobrepostos (Waldarbeiter, 1968) são igualmente decisivas no que será a fase de revisitação "cubista" de MANUEL BOTELHO (1989-1996) quase ausente desta retrospectiva.

Uma segunda série de trabalhos da primeira área cronológica ( 008, 008 a, 009 b, 009 c, etc.) da exposição revela-nos também um estilo de representação onde figuração, encenação e nomeação, determinam os resultados plásticos e semânticos. A redução do número dos protagonistas (raramente mais do que dois, ainda que por vezes enquadrados por figuras tutelares de animais), o seu recorte sobre os fundos, a interacção directa estabelecida entre eles e a relação de dependência de um para com o outro (adulto e criança), separa esta série das anteriores (9), conduz-nos para uma situação mais confessional, que os próprios títulos confirmam. Mas não podemos deixar de ver estas obras, onde o sentido narrativo se clarifica de um modo nunca mais retomado e onde a influência dos seus companheiros e professores ingleses (Timothy Hyman, Ken Kiff ou Paula Rego, por exemplo) se revela clara, como reflexão sobre um conjunto de questões universais. A saber: a protecção como modo de opressão, a separação como modo de abandono; e, todas elas, como momentos de ruptura emocional, de trauma inultrapassado, como berço de uma angústia e de um desespero determinantes.

A mensagem de MANUEL BOTELHO, enredada entre a necessidade de reflexão, a consciência da impossibilidade de acção transformadora directa e os abismos da introspecção, complexifica-se no trânsito entre as imagens e os títulos. O desfasamento entre os dois elementos do título, quando é enunciado simultaneamente em português e inglês, falseia a ideia de tradução e persiste ao longo de toda a sua obra como intromissão irónica, garante de esfriamento e auto-distanciamento crítico em relação ao corpo da imagem, ao mesmo tempo, que lhe acrescenta um suplemento de significado. Temos, por exemplo, e percorrendo a totalidade da produção do artista, Burros Cegos - Pissing and Braying , 1987, A Tralha e a família - She Carries Them Everywhere , 1992, A derrocada - Entropic Pursuit , 1998-99 ou Ultimate Surrender - Amputação , 2004, por exemplo (039, 118, 151 a, etc.).

Ainda nos anos finais da década de 1980 e continuando a desenvolver-se na década seguinte (1989-1996) algumas pinturas, cada vez de maiores dimensões, mantendo a intencionalidade social e crítica da sua mensagem, introduzem-nos outras questões estilísticas. Pertencem a um período que o próprio MANUEL BOTELHO designa de influência cubista embora, mais evidentemente, procedam de uma revisitação da obra pós-cubista de Picasso, Braque ou mesmo do Léger das grandes figurações. Separação entre planos de cor e desenho de contorno, fragmentação de uma figura em vários elementos, entendimento desses elementos como formas em sobreposição, desacerto e impossível encaixe final, formalização pesada e arcaizante dos corpos, composição das figuras em planos separados dos fundos e todavia sem espaço vazio entre ambos, são soluções formais onde o próprio recorte e colagem de papéis ou outros materiais (tecidos) sobre o fundo do desenho ou sobre o fundo da pintura são recursos complementares.
Algumas destas pinturas atingem fortes conotações interventivas e maior estabilidade compositiva (Maria Bala de Canhão, 1992, por exemplo – 119) outras, aprofundam uma linha de intensidade erótica violenta, melhor diríamos de imaginação pornográfica, de que se mostram aqui alguns exemplos ( Putas e Porcos , 1990, por exemplo – 085, 086, 087). Finalmente, outras obras (Trapos Secos, 1988 ou Sumo de Cortiça - Black Lemons , 1988/92 – 056, 057 a) mantêm forte componente de radicalização expressionista das figuras e temas, extremando a desagregação, por simulação de esfarelamento ou putrefacção das formas, os jogos entre ácidos contrastes cromáticos e densos escurecimentos, entre fortes texturas e intensos vazios. O conjunto destas obras prolonga a orientação temática referida para os trabalhos iniciais ao mesmo tempo que consolida uma galeria de seres solitários e agigantados nos cenários, figuras deslocadas no papel de heróis que poderiam preencher.

O ponto de vista de MANUEL BOTELHO vai mudar nas obras dos anos de 1994 em diante, embora delimitando etapas diferenciáveis e sucessivas na sua obra mais recente.

O rural muda-se em urbano (embora afundado numa perspectiva suburbana) e o nacional articula-se com o internacional. A cidade e a massificação consumista e as perversões nascidas das suas relações entre a política e os cidadãos enunciam os sinais da realidade quotidiana trabalhada e articulam-se com uma presença crescente de elementos eruditos, de carácter pictórico ou arquitectónico mas não literário, e de valor simbólico e alegórico. Cada um desses níveis pode ser deslocado, ocupar ou passar a desempenhar um papel tradicionalmente atribuído a outro: anacronismos nas relações entre figuras e entre figuras e cenários, acumulação de erros e heterodoxias de carácter iconográfico são permanentes e fazem parte do jogo de reinterpretação que MANUEL BOTELHO ia desencadear.

A pintura de MANUEL BOTELHO acumula crescentes sinais de inquietação. Acentua-se a linha de fusão entre a "angst" pessoal do artista e a denúncia crítica. Os temas da obra de MANUEL BOTELHO são políticos, sociais e culturais no sentido mais lato dos termos, de tal modo que podemos mais declaradamente entendê-la como um vasto discurso antropológico.
Para representar o mundo exterior (no acompanhamento imediato da realidade catastrófica da vida pública e mundial) o artista mobiliza agora dois tipos de imagens de aparência muito diversa: as velozes ou efémeras, registadas e produzidas pelos media contemporâneos (jornais e televisão), e as imagens lentas, estabelecidas como estereótipos pela tradição iconográfica da história da arte ocidental.

Manuel Botelho usa imagens que a história já garantiu como "clássicas", imagens ainda fora dessa classificação e imagens para sempre votadas ao domínio da "baixa cultura". O objectivo é sobrepô-las e mostrar os fios de continuidade que entre elas se tecem. As imagens descartáveis (de jornais e revistas), quando comparadas com as imagens paradigmáticas da história da arte ocidental, revelam continuidades formais e compositivas que parecem provar a sobrevivência de uma matriz transhistórica comportamental, ou seja, de uma civilização.

É a partir destas constatações que podemos entender, na obra de MANUEL BOTELHO, a possibilidade de um caminho capaz de arriscar uma síntese de contrários, uma fusão que não é apenas visual e plástica mas ainda de pensamento e acção. MANUEL BOTELHO actualiza o passado e contribui para o entendimento do presente. Mas o estado do presente, decalcado, paralelo ou sobreposto ao testemunho do passado, não é justificado, nem desculpado por isso, não é aceite sem luta crítica. Resulta, porém, como fatalidade contra a qual se ergue um discurso de atenção e protesto aparentemente sem esperança.

Ao registar a inquietação do real exterior (numa espécie de novos "Desastres da Guerra" goyescos) e ao conformá-lo à estabilidade de um sistema de referências matriciais MANUEL BOTELHO está a tentar garantir uma solução que, pelo menos, indica um sentido para a história do mundo, que evita que sejamos arrastados para um abismo. Ao mesmo tempo, MANUEL BOTELHO, está a colocar máscaras sobre a inquietação subjectiva interior que o estrutura como ser humano.

Quando usa a sua imagem ou a cruza com a de outras personagens em cenas de conteúdo político-social (o que é recorrente) o artista conduz a extremos de tensão e complexidade o seu jogo de máscaras e representação teatral. É que, o descobrimento da sua personalidade, posta a nu pela exibição física e cenográfica do corpo representado, não é, afinal, objectivo seu. A apresentação nesta exposição de uma série de nus de modelo, de retratos ou auto-retratos (busto, rosto, corpo ou meio corpo), constituindo temas autónomos (ver desenhos de 1985) ou auto-representações em obras mais vastas, não deve ser vista como contribuição para um retrato psicológico do artista ou dos seus modelos, para uma confissão sincera. Será, ainda e sempre, uma teatralização do Eu e do Outro no mundo. Qualquer esperada revelação psicológica é diferida e mediada por uma personificação: cada personagem real dilui a sua individualidade ao assumir o papel de uma personagem-tipo já estabilizada na iconografia da história política, da história da arte, da religião...

As imagens mediáticas invadem e conferem um sentido à nossa contemporaneidade. Resta saber que tipo de espessura ou densidade possuem. MANUEL BOTELHO nega-lhes a possibilidade de, por si mesmas, alta e baixa cultura se tornarem significativas. Associando-as aos elementos eruditos referidos alcança uma opacidade que enriquece o discurso e constrói a sua complexidade produtiva. Contudo, MANUEL BOTELHO não garante nenhuma estabilidade às imagens assim produzidas.

Pareceria que cada uma das suas pinturas e desenhos se faria entender segundo os parâmetros da pintura narrativa em cujas fronteiras podemos colocar pintura de história, pintura religiosa e pintura de género. Mas ao cruzar, sem hierarquizar, todos ou vários dos diferentes níveis discursivos convocados em cada uma dessas imagens, ao sobrepor e deslocar uns sobre os outros cada um desses níveis de linguagem, MANUEL BOTELHO anula-os uns aos outros, anula a determinação unívoca que poderíamos esperar de uma pintura socialmente crítica, mas que não podemos esperar da pintura auto-reflexiva e auto-crítica, que realmente pratica.

O predomínio de um permanente expressionismo, raro na sensibilidade nacional, é acrescentado nas obras desta fase final por uma crescente vertente estilística e compositiva maneirista, e mesmo barroca, mais comum à sensibilidade nacionalmente dominante e reanimada como situação neo-maneirista e neo-barroca pelo primeiro contexto pós-moderno em que se situou e cujas direcções a sua pintura posterior aprofundou. O modo como o desenho se sobrepõe à pintura ou como esta surge mais como mancha livre e escorrimento que como preenchendo ou definindo planos, o modo como a linha do desenho adquire valores quase caligráficos, os já acentuados desequilíbrios de escalas, o próprio campo histórico de recolha das citações figurativas, em termos de hetero e auto-citação temática e formal, tudo concorre para a certeza desta afirmação.

Os temas profanos dessa última pintura versam indisciplina escolar, assaltos e rixas de rua, invasões, massacres, genocídios e mortes por desastres naturais, como inundações, e ecológicos, como a contaminação das zonas costeiras, assassinatos, violações, raptos, casos de pedofilia e outros escândalos sexuais e financeiros, modelos de intervenção dos meios de comunicação social, cerimónias políticas tais como recepções, tomadas de posse, casamentos, renúncias e destituições, rendições, julgamentos e confissões, conferências de imprensa e discursos parlamentares, etc., etc. (221, 241, 271, 279, etc.).

Os temas buscados no cerimonial sagrado e na iconografia do cristianismo, nomeadamente do catolicismo, são descidas da cruz, piétas, entronizações, sagradas famílias e sagradas conversações, confirmações, baptizados, penitências, flagelações, bênçãos, visitações, etc., etc. (168, 170, 171, etc.).

Finalmente, na arquitectura moderna, que surge como cenografia desenhada em perspectivas sobrepostas ou isoladas, MANUEL BOTELHO serve-se de uma multiplicidade de obras de Le Corbusier, Mies van der Rohe, etc., etc. ou da sua perversão nos exemplos de arquitectura nazi (171, 172, 295, etc.). Repare-se, finalmente, na acentuada ausência da Natureza nestas obras. Essa ausência acentua o clima de asfixia criado: não há uma única paisagem, o volume de uma montanha, uma linha de praia, apenas uma ou outra árvore isolada. Mas pode haver animais - que actuam como personagens, padronizações ou elementos cenográficos: os cães, miseráveis e os insectos, invasores, marcam ritmadamente o espaço, jogam sentidos com os aviões incendiados e estes com os pássaros...

Conjuntamente com estes elementos complementares de acção, com os objectos e adereços de cena (fisgas, metralhadoras, pistolas, panejamentos, microfones, bancos, cadeiras...), com o conjunto de novas cenas iconográficas criadas por MANUEL BOTELHO, os protagonistas destas pinturas formam uma galeria alternativa quer à iconografia popular dos mass media quer à iconografia do modernismo. Temos crianças-soldados, santas e santos, ministros e arrumadores, intelectuais de craveira e heróis mediáticos, tipos da antiguidade clássica à mistura com gente anónima, figuras retiradas das fotografias dos jornais e revistas ou reproduzindo modelos de Poussin e Botticelli colhidos em reproduções de arte. E mantêm-se as composições onde os jogos de articulação espacial estabelecem uma violenta diferenciação de escala entre as figuras, solução que detectámos desde os anos 80 e que tanto radicam em Goya como se confirmam em Jeff Wall (10).

Tudo e todos se podem cruzar entre si, de um modo contido ou torrencial. Assim, fazem regressar em carne viva, as camadas da nossa memória civilizacional, recordam-nos que os tempos persistem, intactos ou em farrapos, uns sobre os outros e uns dentro dos outros. A violência e descompressão individual e social obtida pela confissão católica repete-se na humilhação da confissão mediática, a dor extrema da mãe que segura o cadáver do filho permanece no homem que se segura a si mesmo, o terror da criança judia que se rende é o terror do sequestrado, a delicadeza ritual do beijo e do abraço sagrados regressa nas cerimónias profanas da República, permanece a imagem de opressão-protecção de quem abençoa, e a serena ou castigadora presença imaginada de uma legião de anjos custódios pode cobrir o largo tempo e espaço de inscrição de toda uma civilização.

Muitos dos cenários exteriores destas cenas são pontuados ou delimitados por edifícios históricos do modernismo dados em perspectivas multiplicadas, por vezes alterados nas formas e nas proporções. Os cenários interiores, esses, evocam as salas cerimoniais das várias sedes do poder político, numa mesma solução de deformação perspéctica e alteração de proporções. Em ambos os casos o espaço existe esvaziado de alguns elementos de orientação e equilíbrio. Servindo uma estratégia de leveza da imagem, eliminando uns pormenores, acentuando outros esta solução conduz-nos, afinal, para uma dimensão de angústia. Todos os hiatos criados nas imagens são significantes, são zonas não preenchidas de informação visual, todos esses intervalos brancos podem funcionar como sombras servindo a estratégia temática do artista.

O peso e densidade iniciais das figuras e dos cenários (anos 80) são então substituídos por progressivas soluções de transparência e leveza. A ausência ou indecisão da linha de chão, a flutuação dos corpos humanos e animais, dos objectos e edifícios e a predominância da linha sobre a cor acentuam essa tendência. Nos desenhos, ou nas pinturas (que podemos sempre pensar como sendo grandes desenhos) a sobreposição controlada de algumas figuras ou a intervenção pontual de fortes indicações cromáticas não contraria a estratégia de leveza compositiva e esvaziamento espacial, antes cria um pulsar rítmico que favorece o seu reforço e entendimento.

Efemeridade mediática e superficialidade factual parecem dominar o núcleo central das composições cenográficas construídas recentemente por MANUEL BOTELHO: nelas podemos reconhecer o próprio, políticos e intelectuais, cerimónias públicas, acontecimentos rotineiros, acontecimentos traumáticos embora banais da história contemporânea. As situações classificam estas imagens entre o bufo e o trágico. São visões evidentemente críticas, pelo modo já referido como associam elementos díspares numa mesma imagem (figuras, adereços, escalas) e pelos temas que desenvolvem. E visões desencantadas, pelo modo como dão o lado esvaziado da vida política, a pressão dos media sobre o indivíduo, como sugerem a inevitável fragilidade dos revoltados ou a generalização de catástrofes humanitárias ou ecológicas.

Mas, simultaneamente, paradigma e regra enquadram toda a encenação dessas imagens – o esforço de controlar danos colaterais provocados pela tensão entre imagens de origens, tempos e sentidos contraditórios, de escalas excessivas e desconformes dos elementos, é deliberado. Se nesta etapa, MANUEL BOTELHO procede, mais uma vez, a uma ordenação diferenciada de temas, o objectivo é generalizar a mensagem, ou seja, universalizá-la, possibilitar a interpretação paradigmática de diferentes realidades contemporâneas. Trata-se, nesta procura de inesperadas coincidências entre ambas as realidades, de encontrar uma estabilidade na instabilidade, guias de orientação que impeçam o descalabro total do mundo exterior e do mundo interior.

De facto, é em definitivo a partir do novo século que podemos estabelecer esta nova realidade na pintura de MANUEL BOTELHO. Vai-se progressivamente fundindo a vontade de comentário do real e de reflexão sobre o real com a necessidade de reflexão sobre a própria condição individual do artista em contexto. Os mundos interior e exterior encontram-se. O artista, através da auto-representação, assume os caracteres dos seus personagens; e, através da citação e recriação de modelos da história da pintura e da cultura ocidentais e dos seus próprios temas encena as suas dores como dores do mundo – ou assume as dores do mundo como as suas dores.
Travestimento e performance surgem latentes nesse desejo de auto-representação o que leva MANUEL BOTELHO a posar como Cristo ou como Virgem ou simultaneamente como Cristo e Virgem nas estranhas Piétas masculinas e de dupla auto-representação. MANUEL BOTELHO procede segundo modalidades que podem ter duas leituras opostas: profanam a iconografia sagrada ou sacralizam a banalidade do quotidiano e as angústias individuais conformando-as aos rituais de representação da pintura religiosa?

Para além da afirmação de uma ética pessoal de reflexão e acção, que o artista, longa e persistentemente, expõe na sua obra, o tempo não é favorável a certezas. Porém, as estratégias de MANUEL BOTELHO garantem densidade e estatuto históricos aos vastos temas sociais e psicológicos (confronto do indivíduo consigo mesmo ou do indivíduo com o colectivo) ou artísticos (relação entre a contemporaneidade, modernidade e tradição). É esta realidade, construída sobre "o fio da navalha", que sustenta todo o edifício criativo e pessoal de MANUEL BOTELHO.


João Pinharanda
Lisboa, 31 de Dezembro de 2004

(Ensaio publicado no catálogo da exposição: Manuel Botelho: Desenho e Pintura, 1984-2004, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2005)


  • NOTAS:

    1. O avô paterno Carlos Botelho (1899-1982) é pintor de relevo na História da pintura portuguesa e seu pai, Rafael Botelho (1923) arquitecto de referência na História da arquitectura moderna portuguesa.

    2. Manuel Botelho concluiu o curso de arquitectura da Escola de Belas-Artes de Lisboa em 1976 e exerceu por alguns anos em vários ateliers.

    3. Um dos factos mais relevantes de uma sua biografia por si redigida para a obra Manuel Botelho, Editorial Estar, Lisboa, 2000 é o modo como Manuel Botelho se sente incapaz de elidir o entretecer da sucessão de acontecimentos familiares ou pessoais com a evolução da sua própria obra artística: relações de amizade com mestres, morte de familiares, nascimentos de filhos, casamento, divórcio e novo casamento...

    4. Duas vezes seu professor (ver biografia) Rolando Sá Nogueira (1921-2002) desempenhou um papel decisivo no desenvolvimento de uma pintura de matriz Pop no contexto nacional tendo sido um dos primeiros artistas portugueses a escolher, nos anos 60 do século passado, a emigração para a Londres e não para Paris.

    5. Citado de uma carta de Manuel Botelho a António Matos datada de 2002.

    6. Chegado a Londres Manuel Botelho inscreveu-se numa escola e conviveu intensamente com um conjunto de artistas capazes de preencher o seu desejo de aprofundamento de uma pintura figurativa e narrativa. Ver biografia.

    7. Referimo-nos, especialmente, às relações que podem ser estabelecidas com o campo do desenho ilustrativo de Carlos Botelho que, numa situação de forte censura política, entre 1928 e 1950, desenvolveu regularmente, no Sempre Fixe, uma página de comentário crítico ao quotidiano nacional e internacional ("Os Ecos da Semana"). Manuel Botelho transforma a dimensão factual e efémera do comentário humorístico em discurso paradigmático. Do estudo em questão resultaram três exposições retrospectivas de pintura e desenho: em Lisboa, no Palácio Galveias (1994) e no Museu Arpad Szenes-Vieira da Silva (1999), e em Almada, na Casa da Cerca (1999).

    8. Para nos situarmos nos parâmetros definidos pelo próprio Guston ver conversa com Joseph Ablow, 1966 recolhido in Philip Guston, Peintures 1947-1979, Centre Georges Pompidou, Paris, 2000

    9. Há também uma série de desenhos das mesmas datas, desenvolvido em torno das relações e rupturas entre casais, não incluída nesta exposição.

    10. Respectivamente, O Colosso e A Gigante, por exemplo.